Neste <2023, o ano mais quente da história>, cerca de <85.000 cidadãos saíram às ruas de Amsterdam> neste Domingo (12 de Novembro de 2023) no que a imprensa descreve como certamente a maior marcha por justiça climática da história da metrópole holandesa. “Não há planeta B!”, “Aja agora ou nade depois!” e “A Amazon errada está queimando!” foram algumas das frases que se expressaram nos cartazes dos cidadãos nesta mega-manifestação que A Casa de Vidro esteve cobrindo com foto, vídeo e texto.
A <KLIMAAT MARS> foi também um dos maiores protestos motivados pela crise climática já ocorrido no território da Europa. Com presença da <ativista sueca Greta Thunberg discursando na Museumplein> e forte protagonismo da causa palestina, a KLIMAAT MARS teve como tema central “A CRISE É AGORA” (DE CRISIS IS NU, em dutch). Uma <transmissão ao vivo com quase 5 horas de duração foi realizada pelos realizadores e está disponível para assistir no site oficial.>
O <jornal “Het Parool”>, explicitamente tendencioso em sua manchete, preferiu destacar em sua matéria de capa a cisão interna no movimento cidadão em relação à Palestina ao invés de sublinhar a magnífica solidariedade e unidade de propósito que se viu nas ruas em relação à crise ecológica. Apesar de colocar em letras garrafais que Amsterdam acaba de realizar a maior marcha pelo clima de sua História, o jornal reclamou de “uma mancha” no protesto.
O que ocorreu foi o seguinte: Greta foi quase impossibilitada de falar diante do fuzuê causado por um <discurso de outra jovem mulher que a precedeu, a Sahar Shirzad>, que acompanhada de uma mulher palestina fez uma apaixonada conclamação em prol da solidariedade com os palestinos que incluiu o polêmico slogan “From the river to the sea, Palestine will be free!” (Do rio ao mar, a Palestina se libertará!). A intervenção de Sahar também motivou a palavra de ordem gritada em coro “No climate justice on occupied land!” (Não há justiça climática em terra ocupada) – que a própria Greta entoou ao microfone.
Não apenas a manifestação esvaziou consideravelmente após Shirzad entoar o From The River To The Sea, como rolaram momentos de caos no palco central, com um senhor tomando agressivamente o microfone das jovens mulheres no palco para dizer “vim a uma marcha para o clima e não para um comício político!” ou algo parecido. A Sahar foi silenciada; a pauta-Palestina parecia ter sido censurada. No entanto, com muita dignidade, Greta Thunberg, ao receber o microfone, re-passou a palavra às jovens mulheres que haviam sido interrompidas e silenciadas. Vídeos a seguir:
Greta Thunberg following 2/2 #klimaatmars #KlimaatRechtvaardigheid #ClimateActionNow @GretaThunberg pic.twitter.com/iIGS9rh7kO
— iAnnet (@iAnnetnl) November 12, 2023
Aquela que Jair Genocida Bolsonaro desprezava como “pirralha” é hoje um ícone vivo para o que talvez possamos apelidar de “Geração Fridays For Future”. Greta Thunberg, eleita em 2019 a <“pessoa do ano” da Time> (e a mais jovem na história a ser honrada pela revista), é hoje este fenômeno sem precedentes: uma aspie que lidera massas, uma adolescente no front do catastrofismo esclarecido, o que nos leva a pensar: quando até os introvertidos não saem mais dos protestos de rua, é que a situação está mesmo feia… “I want you to panic!” (“Eu quero que vocês entrem em pânico!”) é uma das frases de Greta que virou meme e foi parar nos cartazes, nas mochilas, nas tatoos.
Ao contrário do que o jornalão falou, e na contracorrente dos manifestantes que foram embora quando começamos a falar sobre as urgências de Gaza, Do Rio Ao Mar não é mancha nenhuma na marcha, porra! Um certo “esquadrão do politicamente correto” tem dado as caras nas manifs de Amsterdam querendo silenciar vozes mais radicais que erguem faixas dizendo “Ethnic Cleansing Is Not Self-Defense!” (Limpeza Étnica Não É Auto-Defesa!), por exemplo.
Testemunhei, uma semana antes da Marcha do Clima, no mesmo Museumplein, como certos manifestantes “pacifistas”, que marcharam com pombas brancas da paz e cantaram Lennon & Oko (“all we are saying / is give peace a chance”), querendo um fim à matança, depois chamaram a polícia para tentar expulsar da praça pública alguns manifestantes que denunciavam o genocídio que o sionismo está em curso de praticar. Eles aceitavam bandeiras com pombas brancas mas não bandeiras denunciando a matança indiscriminada de civis – uma visão ingênua dos caminhos para a pacificação somada a um autoritarismo silenciador contra aqueles que sabem que o fim do apartheid é essencial e que as pombas nada farão em prol de sua realização.
Surpreendemente para todes, <nenhuma prisão foi feita pela Politie na Klimaat Mars>, o que é tanto um sinal de que os Amsterdammers se abstiveram de qualquer tipo de ação direta radical ou estratégia Black Bloc-er confrontacional, como também um sinal de que as autoridades holandesas estão talvez querendo mostrar à sociedade civil que as forças policiais não vão mais continuar abusando de seu poder e oprimindo manifestações legítimas: nada menos que <1500 manifestantes foram presos há poucas semanas, na primeira quinzena de Setembro, na já lendária manifestação da A12 em Haia>.
Vocês sabem o motivo da prisão destas mais de 1500 pessoas durante a manif de Haia? Segundo a Extinction Rebellion Nederlands, estavam bloqueando vias públicas nas proximidades do Parlamento para denunciar que, em meio à catástrofe climática que avança, <o Estado da Holanda ainda investe “46,4 mil milhões de euros anuais em subsídios fósseis”>.
O fuzuê da porra que rolou sobre o palco na Museumplein tem a ver com o suposto conteúdo “anti-semita” do “From the river to the sea, Palestine will be free!” Em <ótima matéria pra AlJazeera, Federica Marsi> explicou toda a complexidade e densidade da consigna hoje agitada nas ruas do mundo todo, e bradada por milhões de vozes (leia aqui).
As pessoas que se colocam em postura de censura dizem que a frase significa que os palestinos estão querendo riscar Israel do mapa quando dizem que a Palestina será livre do rio Jordão ao mar Mediterrâneo. O mais bizarro desta situação é que Israel neste momento está agindo para riscar Gaza do mapa, numa fúria que é também islamofóbica e racista, praticando o que eu chamaria de “agressão imperial à la Bacurau“.
Os movimentos de solidariedade-aos-palestinos são falsamente acusados de anti-semitas – quando são, na verdade, anti-sionistas, o que certamente não é a mesma coisa, e são ainda mais especificamente contra o apartheid e a matança indiscriminada de civis e crianças que este sionismo hegemônico no leme do Estado de Israel impõe à Gaza e à West Bank.
O senhor que protestou ao microfone me parece não apenas de uma ingenuidade gritante – os tipinhos naive às vezes gritam suas groselhas bem brabos pra praça inteira ouvir! Para além de mostrar-se totalmente analfabeto a respeito de interseccionalidade, presume que a crise climática pode ser resolvida sem o uso de “meios políticos”. É groselha sem sentido dizer que uma marcha sobre o clima não poderia incluir solidariedade internacionalista com um povo oprimido que vive hoje no auge de sua miséria e tragédia. O movimento é por justiça climática, e o clima para os palestinos é hoje não de justiça mas de bombas assassinas chovendo dos céus faz 5 semanas.
O senhor ainda me soou horrendamente desrespeitoso com a palavra alheia, mandou aquele machistão <mansplaining> que também é suspeito de gerintocracia: os velhos machos tirando a palavra das jovens mulheres, e dizendo a elas como devem se comportar… ah, que novidade!!!
No documentário filmado para A Casa de Vidro na Dam Square em Amsterdam, decidi incluir bandeiras e cantos-em-coro com o controverso From The River To The Sea. O primeiro motivo foi simplesmente estético: a beleza da consigna palestina me cativou, a emoção da empatia tomou-me feito um tsunami ao ouvir a multidão cantando em coro.
O segundo motivo é mais racional (já que o primeiro foi excessivamente emocional): oponho-me por princípio à censura da expressão verbal e cultural de um povo oprimido, ainda que o conteúdo desta expressão possa ser debatido e criticado – o direito de dizê-lo, eu diria à la Voltaire que posso não concordar com o que está sendo dito, o defenderei até a morte o teu direito de dizê-lo.
O terceiro motivo é jornalístico: omitir isto por temor da controvérsia seria mentir sobre o que gritam as ruas. É um fato que pelo mundo afora – inclusive nas maiores manifestações pró-Palestina já ocorridos na história de Londres e de Washington D.C. – há uma forte presença do From The River to The Sea. E aqui vale a pena relembrar o vídeo que estou comentando, que abre janelas para que cada um tenha uma “experiência” aproximada do que significa estar no turbilhão de uma manifestação indignada e lancinante diante do genocídio cometido contra os palestinos. E vale também citar mais longamente o supracitado texto de Federica Marsi, revelador das várias ocorrências de censuras e sanções contra o From The River To The Sea:
From Beirut to London, from Tunis to Rome, calls for a ceasefire ending Israel’s relentless bombing of Gaza were interspersed with the slogan: “From the river to the sea, Palestine will be free.”
To the crowds waving Palestinian flags, the chant reverberating across the globe expresses the desire for freedom from oppression across the historical land of Palestine. But for Israel and its backers, who label the phrase as pro-Hamas, it is a veiled call to violence that bears an anti-Semitic charge.
The United Kingdom’s Labour Party on Monday suspended Member of Parliament Andy McDonald for using the phrase “between the river and the sea” in a speech at a pro-Palestinian rally.
(…) Nimer Sultany, a lecturer in law at the School of Oriental and African Studies (SOAS) in London, said the adjective expresses “the need for equality for all inhabitants of historic Palestine”.
“Those who support apartheid and Jewish supremacy will find the egalitarian chant objectionable,” Sultany, a Palestinian citizen of Israel, told Al Jazeera.
Freedom here refers to the fact that Palestinians have been denied the realisation of their right to self-determination since Britain granted the Jews the right to establish a national homeland in Palestine through the Balfour Declaration of 1917.
“This continues to be the crux of the problem: the ongoing denial of Palestinians to live in equality, freedom and dignity like everyone else,” Sultany said.
“It’s important to remember this chant is in English and it doesn’t rhyme in Arabic, it is used in demonstrations in Western countries,” he said. “The controversy has been fabricated to prevent solidarity in the West with the Palestinians.”
Pro-Israel observers, however, argue the slogan has a chilling effect. “To Jewish Israelis what this phrase says is that between the Jordan River and the Mediterranean, there will be one entity, it will be called Palestine – there will be no Jewish state – and the status of Jews in whatever entity arises will be very unclear,” Yehudah Mirsky, a Jerusalem-based rabbi and professor of Near Eastern and Judaic Studies at Brandeis University.
“It sounds much more like a threat than a promise of liberation. It doesn’t betoken a future in which Jews can have full lives and be themselves,” he said, adding that the slogan made it more difficult for left-wing Israelis to advocate for dialogue.
MARSI em Al Jazeera
É importante notar que From The River To The Sea é em inglês e não em árabe pois expressa solidariedade “ocidental” ao povo palestino. E por isto liberdade deve ser aqui levada a sério em seu “sentido ocidental”, ou até mesmo no âmbito de uma semântica anglo-saxã: a palavra é freedom. Não se fala de aniquilação de Israel, mas de liberdade para os palestinos.
Mas muitos israeleneses, e muitos judeus pelo mundo, ficam acusando os palestinos de estarem ameaçando acabar com o Estado judeu, o que na atual conjuntura histórica é, convenhamos, um baita dum mimimi de opressor. Os manifestantes pedem uma freedom que significa o fim do apartheid e das medidas sádicas e draconinanas que a aliança Yankee-Sionista vem impondo aos territórios ocupados nas últimas décadas.
Apenas em um ponto eu poderia conceder que o senhor censor e mansplainer pode ter um punhado de razão: em uma marcha sobre a questão climática, chamar a atenção para o martírio palestino pode servir para desviar nossa atenção daquilo que deveríamos ter em foco, como o combate aos subsídios ainda enormes aos combustíveis fósseis – o que também acabou sendo o destino, por enquanto, deste texto.
Retruco a este objeção que seria fantasioso, porém, tratar a questão climática como estando dentro de um quadrado estanque, separado de outros problemas mundiais como as guerras atuais e a geopolítica que lhe serve de moldura. Não existe maneira de lidarmos eficazmente com o caos climático que cresce enquanto estivermos imersos no caos da guerra. De maneira que a interseccionalidade das lutas é um must teórico e prático.
Com Audre Lorde, poderíamos dizer que não devemos fazer uma hierarquia de opressões, nem muito menos menosprezar a urgência humanitária em Gaza dentro de um protesto pelo clima em Amsterdam, pois as situações de catástrofe ambiental e de catástrofe humanitária se sobrepõe, they overlap and intermingle.
A catástrofe climática implica milhões e milhões de refugiados – e vários estudos apontam que a guerra na Síria, por exemplo, tem direta relação com a crise do clima. A atual crise de refugiados palestinos, com mais de um milhão de pessoas forçadas a abandonar seus lares para que estes sejam reduzidos a escombros, aponta para um elemento crucial: já vivemos na pior crise de refugiados desde a 2a G.M. e esta tende a escalar com o horror combinado das guerras e dos eventos climáticos extremos.
Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro
A ser continuado…
Alguns clipes da marcha:
Alguns vídeos feitos no celular – um documentário com os materiais filmados em câmeras melhores está em preparação.
Algumas fotos da maior marcha por justiça climática da história da Holanda:
Publicado em: 13/11/23
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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